quarta-feira, 30 de abril de 2014

Da perda de Vasco Graça Moura às mortes antecipadas

OPINIÃO
Por LUÍS ROCHA


A recente morte de Vasco Graça Moura, amplamente noticiada nos mais diversos meios de comunicação social, suscitou-me algumas reflexões. Sobre os que partem e os que ficam. E sobre o caminho que alguns dos que ficam têm de trilhar.
VGM (como era por vezes referido) é uma personagem que, em vida, suscitou a simpatia e o respeito de muitos (entre os quais me incluo) mau grado alguns defeitos, dos quais o mais notório era o de, politicamente, ter sido sempre um cavaquista impenitente.
Apesar da grave imperfeição que representa a admiração nutrida por esse homem de Boliqueime que ainda hoje nos assombra do lugar mais cimeiro da Nação, o espírito de VGM assumia-se como uma verdadeira cornucópia da qual saíram, ao longo dos anos, inúmeras acções e propostas de cariz cultural sólido e de qualidade inquestionável. Tantas e tão ambiciosas que por vezes despertavam as mais ridículas suspeitas e desagrados. Escrevo este singelo texto tendo ao meu lado sobre a secretária a monumental obra de tradução que é 'A Divina Comédia', de Dante Alighieri (Bertrand, 1995). Tradução essa que VGM empreendeu, a par de obras de Petrarca e de Shakespeare, nos intervalos das suas múltiplas actividades. E recordo quando, anos atrás alguém que conhecia, a estudar numa Faculdade de Letras, me perguntava qual a minha opinião sobre a qualidade da mesma, dado que certos dos seus professores universitários a questionavam.
Independentemente do conhecido chavão do 'tradutor traidor', que inevitavelmente, no acto de traduzir, faz com que se percam certos efeitos do original, a questão é risível. Basta pegar neste livro, ainda por cima bilingue, com a tradução portuguesa dos Cantos apresentada sempre na página ao lado do original italiano, para perceber quanto os críticos se afundavam no ridículo. O trabalho empreendido é genial. E nele o tradutor, permitindo-se apenas algumas liberdades interpretativas, consegue a proeza de manter sempre a rima, algo realizável apenas à custa do conhecimento profundíssimo e do domínio total de um extenso e impressionante vocabulário.
Porque recordo, agora e desta maneira, apenas um fragmento da extensa contribuição de Vasco Graça Moura para a Cultura em Portugal, ele que, além de tradutor, foi poeta, escritor, dramaturgo, político, gestor? Apenas porque já sinto a sua falta. E não por especiais afinidades. Os nossos contactos, que foram vários, mantiveram-se apenas no domínio profissional. Como jornalista, entrevistei-o mais de uma vez para o Diário de Notícias da Madeira, de onde fui removido em Agosto do ano passado, no âmbito de um processo de despedimento colectivo que indubitavelmente, na óptica dos responsáveis, terá servido para melhorar a qualidade da edição. Era um cavalheiro, dono de enorme bagagem cultural e singular polivalência criativa e não só, um senhor educadíssimo mas muito acessível. A primeira vez que o entrevistei foi em Lisboa, já há uns belos anos, tinha então a seu cargo a gestão do Serviço de Bibliotecas da Fundação Calouste Gulbenkian. Seguiram-se vários contactos já no Funchal, onde se tornou presença assídua nas Feiras do Livro com o selo de qualidade de Maria Aurora, cuja ausência hoje em dia se faz sentir como nunca.
Sinto já a falta de VGM porque hoje me interrogo, como fiz com Maria Aurora, sobre quem o poderá substituir. E respondo automaticamente a mim mesmo o que sei: ao contrário do que diz o vulgo, todos são insubstituíveis, particularmente certos indivíduos de determinada estatura humana e cultural. Ninguém substituirá VGM a nível nacional, tal como ninguém consegue substituir no nosso meio Maria Aurora. E tal como ninguém consegue ocupar os lugares de outros que já conheci: José Cardoso Pires, António Alçada Baptista, José Saramago, João Aguiar e outros que entretanto nos deixaram.
Mesmo assim, e é este o cerne da minha reflexão, a ‘sorte’ de VGM e de outros da mesma estirpe é, ironicamente, terem efectivamente morrido. Assim ascendem de imediato, no nosso imaginário tradicional bem português, a um estatuto de respeitabilidade intocável. Por outro lado, VGM não se poderia queixar. Recebeu ainda em vida numerosas distinções, facto que não sei se se verificaria, não fosse a sua vida pública na área da política e enquanto comentador nos jornais da actualidade do país. De qualquer modo, o seu destino pode revelar-se preferível ao de outras figuras notáveis da cena cultural nacional, que se vêm hoje em dia esquecidas e ‘substituídas’ por figurinhas, para não dizer cromos. Estes últimos são autores que uma elite muito pequena de críticos interesseiros classifica hoje em dia como notáveis. Animam muitas celebrações festivaleiras inclusive no nosso meio, o qual olham com o desprezo e a condescendência de quem vai à província; mas, comparativamente à geração que os antecedeu, são como anões lado a lado com gigantes.
Há dias, no ‘Público’, surgiu uma fotografia que me suscitou esta comparação. Mostrava Vasco Graça Moura na companhia de Pedro Tamen, Alberto Pimenta, Alexandre O’Neill e Eugénio de Andrade. Outra apresentava-o com David Mourão-Ferreira. Quem se lembra hoje em dia destes homens? Nos jornais ainda há críticos, jornalistas que saibam quem são?

Não é preciso buscarmos muito longe para encontrarmos um exemplo desse execrável esquecimento, e em vida e de plena posse das suas faculdades. José Agostinho Baptista é um poeta português maior, e, como Herberto Helder, nosso conterrâneo. A riqueza da sua linguagem vem directamente do coração. A genuinidade da sua estatura cultural é inatacável, a sua obra vasta, sólida. Quando ocorreu a sua última referência na imprensa nacional? Depois de ter vindo viver para a Madeira, parece ter ficado ‘fora de moda’; os seus livros entretanto publicados não mereceram a distinção da apreciação construtiva nos média do país, entretanto fascinados por outros nomes mais ‘modernos’, que toda a gente diz serem grandes escritores e poetas porque sim. Será que ainda há leitores que se lembrem do passado e cultivem o dom da comparação? Cada época tem os seus expoentes, e há sem dúvida bons escritores hoje em dia no nosso país, mas a maioria dos realmente bons está em guetos, não em festivais literários. E muitos dos realmente bons não são miúdos algo imberbes e arrogantes, com piercings ou gravatinhas borboleta. São homens e mulheres de quem ninguém se lembra porque geralmente não buscam a luz dos holofotes. Homens e mulheres como José Agostinho Baptista, Mário Cláudio, João Rui de Sousa, José Viale Moutinho ou – ocorre-me – António Rebordão Navarro ou Ana Teresa Pereira. Esta última, também madeirense e residente na ilha, dona de uma obra única, inconfundível pela marca de água, recheada de referências culturais linguísticas, pictóricas, simbólicas, marcada pela influência anglo-saxónica. Alguém ainda se lembra desta gente? Ainda não morreram, mas alguns já vão desistindo de escrever, de intervir. Também quase já lhes sinto a falta. Lembrar-se-ão as pessoas deles na hora da morte como de VGM? E terá o público ainda então a ilusão de que são substituíveis?

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