OPINIÃO
Por LUÍS ROCHA
Por LUÍS ROCHA
A recente morte de Vasco Graça Moura,
amplamente noticiada nos mais diversos meios de comunicação social, suscitou-me
algumas reflexões. Sobre os que partem e os que ficam. E sobre o caminho que
alguns dos que ficam têm de trilhar.
VGM (como era por vezes referido) é uma
personagem que, em vida, suscitou a simpatia e o respeito de muitos (entre os
quais me incluo) mau grado alguns defeitos, dos quais o mais notório era o de,
politicamente, ter sido sempre um cavaquista impenitente.
Apesar da grave imperfeição que representa a
admiração nutrida por esse homem de Boliqueime que ainda hoje nos
assombra do lugar mais cimeiro da Nação, o espírito de VGM assumia-se como uma
verdadeira cornucópia da qual saíram, ao longo dos anos, inúmeras acções e
propostas de cariz cultural sólido e de qualidade inquestionável. Tantas e tão
ambiciosas que por vezes despertavam as mais ridículas suspeitas e desagrados.
Escrevo este singelo texto tendo ao meu lado sobre a secretária a monumental
obra de tradução que é 'A Divina Comédia', de Dante Alighieri (Bertrand, 1995).
Tradução essa que VGM empreendeu, a par de obras de Petrarca e de Shakespeare,
nos intervalos das suas múltiplas actividades. E recordo quando, anos atrás
alguém que conhecia, a estudar numa Faculdade de Letras, me perguntava qual a
minha opinião sobre a qualidade da mesma, dado que certos dos seus professores
universitários a questionavam.
Independentemente do conhecido chavão do
'tradutor traidor', que inevitavelmente, no acto de traduzir, faz com que se
percam certos efeitos do original, a questão é risível. Basta pegar neste
livro, ainda por cima bilingue, com a tradução portuguesa dos Cantos
apresentada sempre na página ao lado do original italiano, para perceber quanto
os críticos se afundavam no ridículo. O trabalho empreendido é genial. E nele o
tradutor, permitindo-se apenas algumas liberdades interpretativas, consegue a
proeza de manter sempre a rima, algo realizável apenas à custa do
conhecimento profundíssimo e do domínio total de um extenso e impressionante
vocabulário.
Porque recordo, agora e desta maneira, apenas
um fragmento da extensa contribuição de Vasco Graça Moura para a Cultura em
Portugal, ele que, além de tradutor, foi poeta, escritor, dramaturgo, político,
gestor? Apenas porque já sinto a sua falta. E não por especiais afinidades. Os
nossos contactos, que foram vários, mantiveram-se apenas no domínio
profissional. Como jornalista, entrevistei-o mais de uma vez para o Diário de
Notícias da Madeira, de onde fui removido em Agosto do ano passado, no âmbito
de um processo de despedimento colectivo que indubitavelmente, na óptica dos
responsáveis, terá servido para melhorar a qualidade da edição. Era um
cavalheiro, dono de enorme bagagem cultural e singular polivalência criativa e
não só, um senhor educadíssimo mas muito acessível. A primeira vez que o
entrevistei foi em Lisboa, já há uns belos anos, tinha então a seu cargo a
gestão do Serviço de Bibliotecas da Fundação Calouste Gulbenkian. Seguiram-se vários
contactos já no Funchal, onde se tornou presença assídua nas Feiras do Livro com
o selo de qualidade de Maria Aurora, cuja ausência hoje em dia se faz sentir
como nunca.
Sinto já a falta de VGM porque hoje me
interrogo, como fiz com Maria Aurora, sobre quem o poderá substituir. E
respondo automaticamente a mim mesmo o que sei: ao contrário do que diz o vulgo, todos
são insubstituíveis, particularmente certos indivíduos de determinada estatura
humana e cultural. Ninguém substituirá VGM a nível nacional, tal como ninguém
consegue substituir no nosso meio Maria Aurora. E tal como ninguém consegue
ocupar os lugares de outros que já conheci: José Cardoso Pires, António Alçada
Baptista, José Saramago, João Aguiar e outros que entretanto nos deixaram.
Mesmo assim, e é este o cerne da minha
reflexão, a ‘sorte’ de VGM e de outros da mesma estirpe é, ironicamente, terem efectivamente morrido. Assim ascendem de imediato, no nosso imaginário tradicional bem português, a um
estatuto de respeitabilidade intocável. Por outro lado, VGM não se poderia
queixar. Recebeu ainda em vida numerosas distinções, facto que não sei se se
verificaria, não fosse a sua vida pública na área da política e enquanto comentador
nos jornais da actualidade do país. De qualquer modo, o seu destino pode
revelar-se preferível ao de outras figuras notáveis da cena cultural nacional,
que se vêm hoje em dia esquecidas e ‘substituídas’ por figurinhas, para não dizer
cromos. Estes últimos são autores que uma elite muito pequena de críticos interesseiros
classifica hoje em dia como notáveis. Animam muitas celebrações festivaleiras inclusive
no nosso meio, o qual olham com o desprezo e a condescendência de quem vai à
província; mas, comparativamente à geração que os antecedeu, são como anões
lado a lado com gigantes.
Há dias, no ‘Público’, surgiu uma fotografia
que me suscitou esta comparação. Mostrava Vasco Graça Moura na companhia de
Pedro Tamen, Alberto Pimenta, Alexandre O’Neill e Eugénio de Andrade. Outra
apresentava-o com David Mourão-Ferreira. Quem se lembra hoje em dia destes
homens? Nos jornais ainda há críticos, jornalistas que saibam quem são?
Não é preciso buscarmos muito longe para
encontrarmos um exemplo desse execrável esquecimento, e em vida e de plena
posse das suas faculdades. José Agostinho Baptista é um poeta português maior,
e, como Herberto Helder, nosso conterrâneo. A riqueza da sua linguagem vem
directamente do coração. A genuinidade da sua estatura cultural é inatacável, a
sua obra vasta, sólida. Quando ocorreu a sua última referência na imprensa
nacional? Depois de ter vindo viver para a Madeira, parece ter ficado ‘fora de
moda’; os seus livros entretanto publicados não mereceram a distinção da
apreciação construtiva nos média do país, entretanto fascinados por outros nomes
mais ‘modernos’, que toda a gente diz serem grandes escritores e poetas porque
sim. Será que ainda há leitores que se lembrem do passado e cultivem o dom da
comparação? Cada época tem os seus expoentes, e há sem dúvida bons escritores
hoje em dia no nosso país, mas a maioria dos realmente bons está em guetos, não
em festivais literários. E muitos dos realmente bons não são miúdos algo imberbes e
arrogantes, com piercings ou gravatinhas borboleta. São homens e mulheres de
quem ninguém se lembra porque geralmente não buscam a luz dos holofotes. Homens
e mulheres como José Agostinho Baptista, Mário Cláudio, João Rui de Sousa, José Viale Moutinho ou –
ocorre-me – António Rebordão Navarro ou Ana Teresa Pereira. Esta última, também
madeirense e residente na ilha, dona de uma obra única, inconfundível pela
marca de água, recheada de referências culturais linguísticas, pictóricas,
simbólicas, marcada pela influência anglo-saxónica. Alguém ainda se lembra
desta gente? Ainda não morreram, mas alguns já vão desistindo de escrever, de
intervir. Também quase já lhes sinto a falta. Lembrar-se-ão as pessoas deles na
hora da morte como de VGM? E terá o público ainda então a ilusão de que são
substituíveis?
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