sábado, 11 de janeiro de 2014

Reportagem

POR PATRÍCIA GASPAR
 FOTOS SÉRGIO FREITAS TEIXEIRA/DR - veja mais fotografias em http://dominiopublicomadeira.blogspot.pt/2014/01/mais-fotos-nos-bastidores-do-circo.html
 
Quatro comerciantes descansam, em amena conversa, na esplanada situada em frente da tenda gigante do circo Mundial (nome atribuído por Rui Mariani em 1994).

A meio da tarde, o parque de diversões instalado, pelo Natal, na Praia Formosa está praticamente vazio. Os dias que antecederam a passada quinta-feira foram de chuva e o sol que brilhou nessa tarde não foi suficiente para convencer o público, nem mesmo os apreciadores dos carrinhos eléctricos.

Vários homens de rosto sisudo param na porta de acesso ao espectáculo circense. “Estou cansado. Nunca mais é domingo”, afirma um deles, contrariando a primeira aparência, com um sorriso generoso. Até a roulotte ali estacionada parece se espreguiçar ao sol, sem preocupações de maior, como que a apreciar a música brasileira que imana da pista.

Mário Mariani sobressai, no cenário de aparente calmaria. 
O domador de animais, filho dos fundadores do Mundial, é pura vitalidade. Apesar de o espectáculo correr numa espécie de automatismo, com rituais seguidos à risca, Mário, o mais velho de 3 irmãos nascidos no circo, controla tudo ao pormenor. É ele que nos leva aos bastidores, ajuda-nos a atravessar o recinto, abrindo caminho entre os colaboradores atentos.
Por detrás da pista, o espaço não é muito grande. Uma lona grossa separa os artistas do palco, num entra e sai de personagens em constante rodopio. A música que acompanha os números é o sinal de entrada em cena. Ninguém chama por ninguém.
A um canto, um velho espelho serve para retocar a maquilhagem. Dali, também se controla o som, a música e a iluminação que deve ser fraca sob a plateia, para que o público não se iniba e viva o espectáculo sem timidez. Mário Mariani explica-nos os pormenores, com um entusiasmo surpreendente para quem nasceu e sempre viveu no circo.
Passamos o pequeno espaço entre o palco e os bastidores. Na rua, ao lado de um camarim, descansam alguns animais. Os crocodilos dormitam, satisfeitos com o calor. Já as cobras estão mais resguardadas, salvo a pitón de seis metros, enrolada numa caixa aberta, ali mesmo.
O domador deixa-nos por nossa conta. “É a minha vez em palco, tenho de ir”, explica. Habituamo-nos à frase, repetida pela maioria dos artistas entrevistados. Mas, as conversas nunca ficam a meio. Param e recomeçam ao ritmo do espectáculo que segue do outro lado da lona, para um público, fraco, muito fraco nessa quinta-feira à tarde. É a vida, em alta velocidade a que se acostumaram os artistas circenses que, apesar da azáfama, nos receberam com a maior das cordialidades.
“É assim a nossa vida e não a trocava por outra. Tenciono morrer no circo”. Daisy Ribeiro brinca com o fogo, mas já fez um pouco de tudo. 
Começou como palhaça ainda criança, passou pela corda, arco e ensaia trapézio com frequência. Aos 16 anos, já actuou nas Caraíbas, em França, na Bélgica… sempre na companhia dos pais, também eles artistas circenses.
A aventura, as viagens, a possibilidade de conhecer pessoas de todo o Mundo são oportunidades sem preço para Daisy Ribeiro. A jovem diz-se possuída pelo “bichinho do circo” e não é a única. A paixão é muito forte, mas não apaga as dificuldades dos artistas circenses, de um percurso incerto que se alimenta de contratos anuais, de casas transitórias e de amigos de passagem, onde até os estudos se fazem à distância.
“Como andamos sempre a saltar de cidade em cidade, de país em país, temos a Escola Móvel, aprendemos através de aulas por vídeo-conferência”, conta Daisy.

Namorar, casar, baptizar e ‘dar à luz’ no circo

A maioria dos artistas tem familiares ou cresceu no circo. Vivem com conforto, em roulottes móveis, equipadas com máquina de lavar, tv e outras comodidades. Alguns chegam a ter uma casa fixa que visitam com muito pouca frequência. Saltam de terra em terra, de cidade em cidade, de país em país, sem rumos predefinidos. Num dia típico, deitam-se depois das duas. Levantam-se pelas 10 horas para fazer a manutenção dos espaços e dos animais e preparar o espectáculo.
 
António Torralvo nasceu dentro de um circo português, apaixonou-se, em Itália, por uma trapezista inglesa e “jeitosa” com quem inicialmente falava por gestos. Casou e baptizou um dos filhos numa pista circense.
“A minha mãe trabalhou até o último minuto, nasci em Santo Tirso e só lá estive uma vez. O circo estava lá parado para uma temporada, eu nasci no recinto e 20 dias depois sai com a comitiva, recém-nascido”, conta.
O palco é o centro da vida deste nortenho. “A minha família já vai na quarta geração no circo”. António conta também que que este Natal foi celebrado na pista, com um almoço natalício que juntou cerca de 30 pessoas à mesa dos Mariani.
António Torralvo é o simpático palhaço Gagá – Gagá porque gaguejava, em pequeno. Em palco, interage com a mulher Karin e com o filho Antony. O trio é imparável. Veio de França, do circo Zavatta. “Lá os circos param no Natal. Como conheço o Rui há muitos anos, vim para cá, com um contrato de um mês”, explica o patriarca que tem casa fixa no Porto, mas raramente a utiliza.
Antes de ser palhaço, António foi gaúcho argentino. Fartou-se das nódoas negras e fez-se palhaço, uma arte que diz ser a mais difícil de todas. “A coisa mais difícil é fazer o público rir… quando não se ri, eu fico zangado, não fico bem”, exclama.
António ruma ao palco. “Tenho de ir é a minha vez”. Esperamos nos bastidores pelo filho Antony, equilibrista e palhaço.
À porta,  a pequena Celina Mariani, de nove anos, cruza-se connosco, vem a resmungar. “Cheguei atrasada ao palco, para dançar. Pregaram-me uma partida: disseram-me que a minha tia não ia actuar”, conta-nos. 
Excelente aluna e mais uma apaixonada pelo circo, Celina passa pela caixa onde descansa a píton de 150 kg com a maior das tranquilidades e vai procurar a amiga, uma porca chamada Pepper.  “Medo? Não, não tenho medo… bem, talvez tenha um bocadinho”, afirma, em tom assertivo.
Celina é a filha mais velha do casal Anabela e Mário Mariani. O irmão Diego tem três anos. O domador de animais viu a mulher, pela primeira vez, há 12 anos, quando fazia porta, no circo.

Natural de Castelo de Paiva, Anabela era babysitter. Um dia levou as crianças ao espectáculo do Mundial. Mário só lhe chamou a atenção, quando lhe começou a fazer sinais, a partir da cabine de som. Trocaram números no intervalo. Casaram num mês.
 
“No início foi complicado, a minha família pensava que os artistas de circo eram boémios, mas depois de conhecerem o outro lado, ficaram descansados”, lembra Anabela que hoje não trocava a vida do circo “por nada”.

O mais difícil talvez seja, declara a tratadora de serpentes, conciliar os estudos, a saúde dos meninos e a convivência com outras crianças. “Nem sempre é fácil, já fui do Algarve ao Porto para uma consulta no médico. Nós, com esta vida, não temos como ter um médico de família”, refere.

 Mesmo com mais dificuldades, no que concerne aos estudos, Anabela orgulha-se de ter dois bons alunos em casa. “Eles são muito inteligentes”, exclama satisfeita.
 

Na corda bamba

Três números tem o equilibrista e palhaço Antony Torralvo, dois deles com um grau de dificuldade elevado: a cama elástica, onde as lesões são mais frequentes, e as cadeiras. O rapaz de 22 anos começou a treinar equilíbrio, em Portugal, aos cinco anos. O mais complicado aprendeu com um artista alemão.
Viajar pelo Mundo e receber aplausos é das coisas que mais gosta no circo. Mesmo crescendo no palco, Antony ainda sente a adrenalina. “Sente-se mais quando há casa cheia”, confessa.
O artista é um jovem normal, embora o seu estilo de vida não permita ter os amigos sempre por perto, gosta de sair, de conviver e há amizades que preserva. “Tenho amigos em Inglaterra, onde trabalhei três anos. Quando posso, visito-os e também já conheço muita gente em França, onde estou agora”.
No circo não há estabilidade. Antony viu acabar o namoro com uma artista ucraniana quando se mudou de Inglaterra para França. 
Os contratos são normalmente anuais, pelo que nunca conseguem estabilizar num sítio. Por outro lado, o facto de não avançarem muito nos estudos deixa os artistas com poucas opções profissionais fora do âmbito circense.
“O que nos vale é que temos muitos contactos e arranjamos sempre trabalho. O circo é como uma família internacional, tomamos conta um dos outros”, afiança Antony.
Em ritmo acelerado é como vivem estes artistas, sempre de um lado para o outro. Não admira, por isso, que até os namoricos acompanhem essa tendência.
“Normalmente, acontece conhecer pessoas quando saímos… às vezes, as raparigas vêm ter connosco. Os rapazes aqui gostam muito de ir para a porta… reparam nas raparigas e depois tentam meter conversa, durante o intervalo ou isso. Se eu tivesse tempo, também fazia isso, ri-se, antes de se afastar, em corrida, rumo ao camarim.
 

Agui, o actor que cospe fogo e é personagem de telenovelas

O traje de Agui Pinto chama-nos à atenção. O actor conversa com um colega, na parte traseira da tenda que dá acesso ao palco. É o cuspidor de fogo, em serviço. Aprendeu a arte quando precisou de contratar, para a sua empresa, um profissional.

Licenciado em comunicação social, o portuense é o que se chama ‘um homem de sete ofícios’. É repórter na Regiões TV, no canal RTV e director artístico na empresa 'Escola circo artes'.
“Todos os actores deviam passar pelo circo. É fabuloso”, diz-nos.
Agui começou no circo como palhaço. O avô era electricista no Coliseu. Um dia precisaram de um palhaço pequeno para sair de uma máquina de levar e foi assim a sua estreia.

Quebrando a tendência dos artistas circenses, o actor é licenciado. Formou-se em comunicação social.
A vida de Agui Pinto passa pelas artes circenses, mas o teatro é também uma paixão. Em Março, o artista vai desempenhar a personagem Juvenal, numa homenagem a Raul Sonaldo e em Setembro estreia uma participação na telenovela da TVI ‘I love it.
 

A família Mariani

Já está perto o fim do espectáculo, quando nos dirigimos à porta de saída. Tantas são as histórias que ficam por contar.
Voltamos a encontrar Mário Mariani junto à entrada, de olhar atento a toda a movimentação.

O mais velho de três irmãos dá continuidade ao trabalho e ao sonho do pai Rui Mariani, descendente de família italiana Mariani. Tinha 15 anos quando se estreou nas lides de domador. “Na altura, os leões tinham três vezes o meu tamanho”, lembra.  
Com o tempo, Mário perdeu o receio de estar em palco com os animais, mas o respeito é, garante, condição essencial para não haver contratempos. O domador lamenta que no futuro, os animais vão sair do circo, conforme estipula a lei e acredita que “todos pagaram pelo comportamento de alguns”. 
“A saída dos animais vai tirar muito público. Há pessoas que chegam à bilheteira e perguntam logo quais são os animais que temos… os animais para mim, são companheiros, não têm preço, nunca os venderia nem por milhares de euros e não faz sentido maltratá-los”, afiança.
Para além de Mário e do pai, também a mãe e a irmã trabalham no circo. O irmão, Ruben, é o ‘homem bala ‘, projectado por um canhão, a 200 kms/h numa distância de 30 metros, e ficou em Vila Nova de Gaia, noutro espectáculo do circo Mundial.

A irmã Carol seguiu as peugadas da mãe como acrobata e domadora de serpentes. Chegou a frequentar um curso técnico-profissional de Marketing e Publicidade, mas acabou por desistir por não conseguir viver longe do circo.
Para trazer o Mundial à Madeira, os Mariani gastaram cerca de 50 mil euros. Mário admite que a crise tirou público da plateia, mas mesmo sem grandes lucros dá para ir fazendo face às despesas. É que, com muita ou pouca gente, o espectáculo tem de continuar.
 
 

 

Curiosidades:                                 

 
 


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