POR PATRÍCIA GASPAR
FOTOS SÉRGIO FREITAS TEIXEIRA/DR - veja mais fotografias em http://dominiopublicomadeira.blogspot.pt/2014/01/mais-fotos-nos-bastidores-do-circo.html
A meio da tarde, o parque de diversões instalado, pelo Natal, na Praia Formosa está praticamente vazio. Os dias que antecederam a passada quinta-feira foram de chuva e o sol que brilhou nessa tarde não foi suficiente para convencer o público, nem mesmo os apreciadores dos carrinhos eléctricos.
Vários homens de rosto sisudo param na porta de acesso ao espectáculo circense. “Estou cansado. Nunca mais é domingo”, afirma um deles, contrariando a primeira aparência, com um sorriso generoso. Até a roulotte ali estacionada parece se espreguiçar ao sol, sem preocupações de maior, como que a apreciar a música brasileira que imana da pista.
Mário
Mariani sobressai, no cenário de aparente calmaria.
O domador de animais, filho
dos fundadores do Mundial, é pura vitalidade. Apesar de o espectáculo correr
numa espécie de automatismo, com rituais seguidos à risca, Mário, o mais velho de
3 irmãos nascidos no circo, controla tudo ao pormenor. É ele que nos leva aos
bastidores, ajuda-nos a atravessar o recinto, abrindo caminho entre os
colaboradores atentos.
Por detrás
da pista, o espaço não é muito grande. Uma lona grossa separa os artistas do palco,
num entra e sai de personagens em constante rodopio. A música que acompanha os
números é o sinal de entrada em cena. Ninguém chama por ninguém.
A um canto, um
velho espelho serve para retocar a maquilhagem. Dali, também se controla o som, a música e a iluminação que
deve ser fraca sob a plateia, para que o público não se iniba e viva o
espectáculo sem timidez. Mário Mariani explica-nos os pormenores, com um
entusiasmo surpreendente para quem nasceu e sempre viveu no circo.
Passamos o
pequeno espaço entre o palco e os bastidores. Na rua, ao lado de um camarim,
descansam alguns animais. Os crocodilos dormitam, satisfeitos com o calor. Já
as cobras estão mais resguardadas, salvo a pitón de seis metros, enrolada
numa caixa aberta, ali mesmo.
O domador
deixa-nos por nossa conta. “É a minha vez em palco, tenho de ir”, explica. Habituamo-nos
à frase, repetida pela maioria dos artistas entrevistados. Mas, as conversas
nunca ficam a meio. Param e recomeçam ao ritmo do espectáculo que segue do
outro lado da lona, para um público, fraco, muito fraco nessa quinta-feira à
tarde. É a vida, em alta velocidade a que se acostumaram os artistas circenses
que, apesar da azáfama, nos receberam com a maior das cordialidades.
“É
assim a nossa vida e não a trocava por outra. Tenciono morrer no circo”. Daisy Ribeiro brinca com o fogo, mas
já fez um pouco de tudo.
Começou como palhaça ainda criança, passou pela corda,
arco e ensaia trapézio com frequência. Aos 16 anos, já actuou nas Caraíbas, em
França, na Bélgica… sempre na companhia dos pais, também eles artistas
circenses.
A aventura,
as viagens, a possibilidade de conhecer pessoas de todo o Mundo são oportunidades
sem preço para Daisy Ribeiro. A jovem diz-se possuída pelo “bichinho do circo”
e não é a única. A paixão é muito forte, mas não apaga as dificuldades dos
artistas circenses, de um percurso incerto que se alimenta de contratos anuais,
de casas transitórias e de amigos de passagem, onde até os estudos se fazem à
distância.
“Como andamos
sempre a saltar de cidade em cidade, de país em país, temos a Escola Móvel,
aprendemos através de aulas por vídeo-conferência”, conta Daisy.
Namorar, casar,
baptizar e ‘dar à luz’ no circo
A maioria dos
artistas tem familiares ou cresceu no circo. Vivem com conforto, em roulottes móveis,
equipadas com máquina de lavar, tv e outras comodidades. Alguns chegam a ter
uma casa fixa que visitam com muito pouca frequência. Saltam de terra em terra,
de cidade em cidade, de país em país, sem rumos predefinidos. Num dia típico,
deitam-se depois das duas. Levantam-se pelas 10 horas para fazer a manutenção
dos espaços e dos animais e preparar o espectáculo.
António Torralvo nasceu dentro de um circo português, apaixonou-se, em Itália, por uma
trapezista inglesa e “jeitosa” com quem inicialmente falava por gestos. Casou e
baptizou um dos filhos numa pista circense.
“A minha mãe
trabalhou até o último minuto, nasci em Santo Tirso e só lá estive uma vez. O
circo estava lá parado para uma temporada, eu nasci no recinto e 20 dias depois
sai com a comitiva, recém-nascido”, conta.
O palco é o
centro da vida deste nortenho. “A minha família já vai na quarta geração no
circo”. António conta também que que este Natal foi celebrado na pista, com um
almoço natalício que juntou cerca de 30 pessoas à mesa dos Mariani.
António
Torralvo é o simpático palhaço Gagá – Gagá porque gaguejava, em pequeno. Em palco,
interage com a mulher Karin e com o filho Antony. O trio é imparável. Veio de
França, do circo Zavatta. “Lá os circos param no Natal. Como conheço o Rui há
muitos anos, vim para cá, com um contrato de um mês”, explica o patriarca que
tem casa fixa no Porto, mas raramente a utiliza.
Antes de ser
palhaço, António foi gaúcho argentino. Fartou-se das nódoas negras e fez-se
palhaço, uma arte que diz ser a mais difícil de todas. “A coisa mais difícil é
fazer o público rir… quando não se ri, eu fico zangado, não fico bem”, exclama.
António ruma
ao palco. “Tenho de ir é a minha vez”. Esperamos nos bastidores pelo filho
Antony, equilibrista e palhaço.
O mais difícil talvez seja, declara a tratadora de serpentes, conciliar os estudos, a saúde dos meninos e a convivência com outras crianças. “Nem sempre é fácil, já fui do Algarve ao Porto para uma consulta no médico. Nós, com esta vida, não temos como ter um médico de família”, refere.
Mesmo com mais dificuldades, no que concerne aos estudos, Anabela orgulha-se de ter dois bons alunos em casa. “Eles são muito inteligentes”, exclama satisfeita.
À porta, a pequena Celina Mariani,
de nove anos, cruza-se connosco, vem a resmungar. “Cheguei atrasada ao palco,
para dançar. Pregaram-me uma partida: disseram-me que a minha tia não ia actuar”,
conta-nos.
Excelente
aluna e mais uma apaixonada pelo circo, Celina passa pela caixa onde descansa a
píton de 150 kg com a maior das tranquilidades e vai procurar a amiga, uma porca chamada Pepper. “Medo? Não, não tenho medo…
bem, talvez tenha um bocadinho”, afirma, em tom assertivo.
Celina é a
filha mais velha do casal Anabela e Mário Mariani. O irmão Diego tem três
anos. O domador de animais viu a mulher, pela primeira vez, há 12 anos, quando
fazia porta, no circo.
Natural de Castelo de Paiva, Anabela era babysitter. Um dia levou as crianças ao espectáculo do Mundial. Mário só lhe chamou a atenção, quando lhe começou a fazer sinais, a partir da cabine de som. Trocaram números no intervalo. Casaram num mês.
Natural de Castelo de Paiva, Anabela era babysitter. Um dia levou as crianças ao espectáculo do Mundial. Mário só lhe chamou a atenção, quando lhe começou a fazer sinais, a partir da cabine de som. Trocaram números no intervalo. Casaram num mês.
“No início
foi complicado, a minha família pensava que os artistas de circo eram boémios,
mas depois de conhecerem o outro lado, ficaram descansados”, lembra Anabela que
hoje não trocava a vida do circo “por nada”.
O mais difícil talvez seja, declara a tratadora de serpentes, conciliar os estudos, a saúde dos meninos e a convivência com outras crianças. “Nem sempre é fácil, já fui do Algarve ao Porto para uma consulta no médico. Nós, com esta vida, não temos como ter um médico de família”, refere.
Mesmo com mais dificuldades, no que concerne aos estudos, Anabela orgulha-se de ter dois bons alunos em casa. “Eles são muito inteligentes”, exclama satisfeita.
Na corda bamba
Três números
tem o equilibrista e palhaço Antony Torralvo, dois deles com um grau de
dificuldade elevado: a cama elástica, onde as lesões são mais frequentes, e as
cadeiras. O rapaz de 22 anos começou a treinar equilíbrio, em Portugal, aos
cinco anos. O mais complicado aprendeu com um artista alemão.
Viajar pelo
Mundo e receber aplausos é das coisas que mais gosta no circo. Mesmo crescendo
no palco, Antony ainda sente a adrenalina. “Sente-se mais quando há casa cheia”,
confessa.
O artista é
um jovem normal, embora o seu estilo de vida não permita ter os amigos sempre
por perto, gosta de sair, de conviver e há amizades que preserva. “Tenho amigos
em Inglaterra, onde trabalhei três anos. Quando posso, visito-os e também já
conheço muita gente em França, onde estou agora”.
No circo
não há estabilidade. Antony viu acabar o namoro com uma artista ucraniana
quando se mudou de Inglaterra para França.
Os contratos são normalmente anuais, pelo que nunca conseguem estabilizar num sítio. Por outro lado, o facto de não avançarem muito nos estudos deixa os artistas com poucas opções profissionais fora do âmbito circense.
Os contratos são normalmente anuais, pelo que nunca conseguem estabilizar num sítio. Por outro lado, o facto de não avançarem muito nos estudos deixa os artistas com poucas opções profissionais fora do âmbito circense.
“O que nos vale é que temos muitos contactos e
arranjamos sempre trabalho. O circo é como uma família internacional, tomamos
conta um dos outros”, afiança Antony.
Em ritmo acelerado é como vivem estes artistas, sempre de um lado para o outro. Não admira, por isso, que até os namoricos acompanhem essa tendência.
“Normalmente, acontece conhecer pessoas quando saímos… às vezes, as raparigas vêm ter connosco. Os rapazes aqui gostam muito de ir para a porta… reparam nas raparigas e depois tentam meter conversa, durante o intervalo ou isso. Se eu tivesse tempo, também fazia isso, ri-se, antes de se afastar, em corrida, rumo ao camarim.
Agui, o actor que cospe fogo e é personagem de telenovelas
O traje de
Agui Pinto chama-nos à atenção. O actor conversa com um colega, na parte
traseira da tenda que dá acesso ao palco. É o cuspidor de fogo, em serviço.
Aprendeu a arte quando precisou de contratar, para a sua empresa, um
profissional.
“Todos os
actores deviam passar pelo circo. É fabuloso”, diz-nos.
Agui começou
no circo como palhaço. O avô era electricista no Coliseu. Um dia precisaram de
um palhaço pequeno para sair de uma máquina de levar e foi assim a sua estreia.
Quebrando a tendência dos artistas circenses, o actor é licenciado. Formou-se em comunicação social.
Quebrando a tendência dos artistas circenses, o actor é licenciado. Formou-se em comunicação social.
A vida de
Agui Pinto passa pelas artes circenses, mas o teatro é também uma paixão. Em
Março, o artista vai desempenhar a personagem Juvenal, numa homenagem a Raul
Sonaldo e em Setembro estreia uma participação na telenovela da TVI ‘I love it.
A família Mariani
Já está
perto o fim do espectáculo, quando nos dirigimos à porta de saída. Tantas são
as histórias que ficam por contar.
Voltamos a encontrar Mário Mariani junto à entrada, de olhar atento a toda a movimentação.
O mais velho de três irmãos dá continuidade ao trabalho e ao sonho do pai Rui Mariani, descendente de família italiana Mariani. Tinha 15 anos quando se estreou nas lides de domador. “Na altura, os leões tinham três vezes o meu tamanho”, lembra.
Voltamos a encontrar Mário Mariani junto à entrada, de olhar atento a toda a movimentação.
O mais velho de três irmãos dá continuidade ao trabalho e ao sonho do pai Rui Mariani, descendente de família italiana Mariani. Tinha 15 anos quando se estreou nas lides de domador. “Na altura, os leões tinham três vezes o meu tamanho”, lembra.
Com o tempo,
Mário perdeu o receio de estar em palco com os animais, mas o respeito é,
garante, condição essencial para não haver contratempos. O domador lamenta que
no futuro, os animais vão sair do circo, conforme estipula a lei e acredita que
“todos pagaram pelo comportamento de alguns”.
“A saída dos
animais vai tirar muito público. Há pessoas que chegam à bilheteira e perguntam
logo quais são os animais que temos… os animais para mim, são companheiros,
não têm preço, nunca os venderia nem por milhares de euros e não faz sentido
maltratá-los”, afiança.
Para além de
Mário e do pai, também a mãe e a irmã trabalham no circo. O irmão, Ruben, é o ‘homem
bala ‘, projectado por um canhão, a 200 kms/h numa distância de 30 metros, e
ficou em Vila Nova de Gaia, noutro espectáculo do circo Mundial.
A irmã Carol seguiu as peugadas da mãe como acrobata e domadora de serpentes. Chegou a frequentar um curso técnico-profissional de Marketing e Publicidade, mas acabou por desistir por não conseguir viver longe do circo.
Para trazer
o Mundial à Madeira, os Mariani gastaram cerca de 50 mil euros. Mário admite
que a crise tirou público da plateia, mas mesmo sem grandes lucros dá para ir
fazendo face às despesas. É que, com muita ou pouca gente, o espectáculo tem de
continuar.
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