Por LUÍS
ROCHA
Entrevistado pelo ‘Domínio Público’
na sua mais recente passagem pela Madeira, o maestro e compositor critica a
gestão cultural do país e não poupa as responsabilidades da comunicação social
na mediocridade geral, por vender os DJs como vedetas: “Não reconheço essa
profissão”, afirma.
O compositor
e maestro António Victorino d’Almeida é taxativo: os gestores são “figuras” que
têm sido particularmente “nocivas” ao país – inclusive na área da Cultura, onde
têm ajudado, não a conter gastos, mas, pelo contrário, a multiplicá-los. Os
políticos e os gestores ao seu serviço têm ajudado a delapidar a nação, inclusive
no sector da Cultura, com a conivência de uma comunicação social arredada das
questões das artes e das letras e que elevou os ‘disc-jockeys’, vulgo DJs, a figuras de relevo da cena cultural,
baralhando tudo e nivelando pelo mais baixo.
Declarações
prestadas ontem ao ‘Domínio Público’, no decorrer da mais recente passagem
desta personalidade pela Madeira. Na tarde de sexta-feira, recorde-se, António
Victorino d’Almeida esteve no Conservatório/Escola Profissional das Artes da
Madeira (CEPAM), para responder às questões colocadas pelos estudantes, e à
noite protagonizou um concerto a solo no auditório do Centro de Congressos da Madeira
(Casino), no qual deu a conhecer obras suas, não se limitando a interpretá-las,
mas falando ao público sobre as mesmas.
Como
interveniente multifacetado na vida cultural portuguesa – dado que, além de
compositor, tem obra literária publicada, filmes realizados, participou como
actor em várias produções e é autor de múltiplos programas de divulgação cultural
– António Victorino d’Almeida, com o seu estilo irreverente e despretensioso, é
personagem privilegiada para comentar o estado do país e o impacto que a actual
crise e gestão orçamental do Estado tem tido na vida criativa da nação.
Procurámo-lo com esse objectivo, e não ficámos desiludidos: o maestro continua
com o sentido crítico de sempre, que já conhecíamos doutras entrevistas. E não
poupou nas apreciações que fez.
DESPREZO
PELA CULTURA
Hoje em dia,
em Portugal, “por um lado, insiste-se no incentivo à poupança, de todas as
formas, e apoia-se a toda e qualquer iniciativa. Por outro lado, despreza-se um
sector, a Cultura, que poderia não ser uma enorme fonte de rendimento para o
país, mas que, certamente, alguma coisa daria. Agora, acabar com ela é considerá-la
apenas uma despesa. E é isso que está a acontecer”, afirma.
O facto de o nosso país assistir presentemente a manifestações que pretendem reclamar a atribuição, ao sector cultural, de pelo menos um por cento do Orçamento de Estado mostra bem em que pé é que as coisas se encontram.
O facto de o nosso país assistir presentemente a manifestações que pretendem reclamar a atribuição, ao sector cultural, de pelo menos um por cento do Orçamento de Estado mostra bem em que pé é que as coisas se encontram.
“Volto à
velha expressão que ouvi muito, muito antes do 25 de Abril, já por volta dos
meus 15, 16 anos: ‘A terra a quem a trabalha’. E a música a quem a trabalha,
também. Considero que é necessário expurgar totalmente da Cultura pessoas que
não lhe pertencem. Na música devem estar músicos, no teatro pessoas do teatro…
Os gestores, para a rua! Rua!”, defende.
É claro que admite que são necessários funcionários que se encarreguem da parte administrativa. “Mas essas pessoas não podem estar na direcção. Têm de ser empregadas de uma instituição que, sendo musical, tem de ser dirigida por músicos, sendo teatral, tem de ser dirigida por actores, encenadores e por aí adiante. Ora, nós estamos enxameados de gestores, de pessoas que perguntamos, quem são? A que propósito é que um teatro, um festival, uma orquestra, uma organização qualquer ligada especificamente ao ramo da Cultura tem à sua frente um senhor que a gente não sabe quem é?”, questiona.
É claro que admite que são necessários funcionários que se encarreguem da parte administrativa. “Mas essas pessoas não podem estar na direcção. Têm de ser empregadas de uma instituição que, sendo musical, tem de ser dirigida por músicos, sendo teatral, tem de ser dirigida por actores, encenadores e por aí adiante. Ora, nós estamos enxameados de gestores, de pessoas que perguntamos, quem são? A que propósito é que um teatro, um festival, uma orquestra, uma organização qualquer ligada especificamente ao ramo da Cultura tem à sua frente um senhor que a gente não sabe quem é?”, questiona.
Comentários
que, curiosamente, se adequam particularmente bem à nossa realidade regional,
onde por exemplo o Conservatório/Escola das Artes tem sido sucessivamente
gerido por directores estranhos à cena cultural; onde a Orquestra Clássica da
Madeira esteve, até recentemente, sob presidência de um advogado e político, e
onde ainda hoje o Governo Regional marca uma posição determinante na gestão,
mas não com personalidades reconhecidas da área da Cultura (embora a direcção
artística tenha sido atribuída ao violinista madeirense Norberto Gomes); onde
Pedro Calado deixou triste memória na Câmara Municipal do Funchal, ao ajudar a
extinguir, com a (má) desculpa da contenção orçamental, importantes iniciativas
culturais, como os colóquios literários que a saudosa Maria Aurora organizava; e
onde é a secretária regional Conceição Estudante a responsável pela pasta da
Cultura. Victorino d’Almeida escusa-se a aprofundar comentários sobre a realidade
particular da ilha, que diz não conhecer em pormenor nem em actualidade; mas as
suas apreciações assentam à Madeira como uma luva.
OS GESTORES
PARA A RUA
Em meio aos
protestos dos polícias que galgaram as escadarias do parlamento nacional e à
polémica que envolve as declarações de Mário Soares e as movimentações de
Pacheco Pereira, entre outros assuntos, passou despercebida uma notícia
importante, diz-nos: “Parece que para o ano será obrigatório divulgar quanto
ganham os gestores. E nessa altura, haverá de verificar-se quão nocivas têm
sido essas figuras que não têm credibilidade, não têm competência, não têm
conhecimentos, não têm sensibilidade, não têm criatividade”, acusa.
O maestro e
compositor garante que “com muito pouco dinheiro podem fazer-se muito boas
coisas em matéria de Cultura. Não se trata de miserabilismo, nada disso. Mesmo
Fellini pôde fazer um filme como ‘E la nave va’, caríssimo, excelente, e pôde
fazer um filme como ‘La Strada’, que custou dez reis de mel coado, e foi
igualmente excelente”.
Do mesmo
modo, é possível fazer-se música com grandes despesas, e com poucas. Almeida
enfatiza o facto de termos actualmente em Portugal uma geração de jovens músicos
como nunca houve, “os quais garanto-lhe que não são caros”. Só que a
criatividade e a sensibilidade não podem ser entregues às mãos de um gestor.
“Nós, por
exemplo, não sabermos como é que se chama o director do Teatro Nacional de São
Carlos é muito grave. O S. Carlos custa milhões, e as pessoas nem conhecem o
director, nem os gestores que andam à volta dele? Quando se pergunta
abertamente se alguém sabe quem é, ninguém sabe. E nem sequer sabemos qual é a
programação, ninguém liga... E gastam-se milhões com aquilo. Quando grandes
actores, grandes músicos, figuras extraordinárias da nossa Cultura que deram
provas absolutas vivem de mão estendida a pedir migalhas, enquanto são aqueles
senhores quem manda”.
A brincar um
pouco, o nosso interlocutor chega mesmo a admitir que um por cento do Orçamento
de Estado para a Cultura se calhar chega e basta para se fazerem coisas
válidas. “Se calhar até chega. Agora, tem é que se correr com esta gente da
Cultura, e pôr lá pessoas válidas”.
SECRETÁRIO
DE ESTADO É UM “GROSSEIRÃO E UM COBARDÃO”
A crítica
estende-se ao secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, que este
homem da música classifica como um “medroso”, que inclusive se recusa a
responder a perguntas colocadas delicadamente e correctamente: “É um grosseirão
e um cobardão”, afirma. “É o mínimo que posso dizer do senhor secretário de
Estado”, conclui. E não está só nas suas apreciações à actuação de Xavier:
muito do mundo cultural português dá-lhe actualmente nota negativa.
Em tempos,
recorde-se, António Victorino d’Almeida defendeu a este jornalista, numa
entrevista então publicada no Diário de Notícias da Madeira, que a Orquestra
Clássica da Madeira deveria manter-se sob tutela da Associação OCM, uma
entidade privada. Na altura, Miguel Rodrigues, então director do Conservatório,
pretendia obrigar os músicos da OCM, também professores naquele estabelecimento
de ensino, a integrar uma orquestra sob a tutela do mesmo. Na prática,
tratava-se de retirar músicos à Associação OCM, que subsistia com apoios
governamentais. A iniciativa acabou por não ir para a frente, mas criou-se a
Fundação Madeira Classic, presidida por José Alberto Gonçalves, que congregava
representantes da Associação OCM, do Conservatório e do Governo Regional. Rui
Massena era então administrador da Fundação, director artístico da Orquestra
Clássica e director artístico do Conservatório. Foi um ‘reinado’ de um homem
só, que tudo dominava na cena musical erudita madeirense, mas que por cá pouco
parava, mais ocupado com os seus afazeres fora da ilha. Massena acabou por
retirar-se, a Fundação acabou extinta, mas dessa época ficou um pesado legado
de dívidas, uma Orquestra abandonada por vários músicos e salva ‘in extremis’
pelo Governo Regional da extinção.
No entanto, o Governo acabou, paradoxalmente, por replicar a mesma fórmula da Fundação, ao criar, sob orientação do secretário regional da Educação, Jaime Freitas, a Associação Notas e Sinfonias do Atlântico, ANSA, que no seu interior, qual ‘matrioska’, contém novamente representantes do Conservatório, do Governo e da Associação OCM. Esta última instituição é que acabou por perder significativo poder e influência sobre a Orquestra, tendo de negociar uma solução alternativa, a contragosto.
No entanto, o Governo acabou, paradoxalmente, por replicar a mesma fórmula da Fundação, ao criar, sob orientação do secretário regional da Educação, Jaime Freitas, a Associação Notas e Sinfonias do Atlântico, ANSA, que no seu interior, qual ‘matrioska’, contém novamente representantes do Conservatório, do Governo e da Associação OCM. Esta última instituição é que acabou por perder significativo poder e influência sobre a Orquestra, tendo de negociar uma solução alternativa, a contragosto.
MADEIRA
PRECISA DE UMA ORQUESTRA SINFÓNICA
Num
comentário mais actualizado sobre esta situação, António Victorino d’Almeida
congratulou-se ao ‘Domínio Público’ pelo facto de Norberto Gomes ter ficado com
as responsabilidades artísticas e de programação da temporada: “Acho muito bem
que seja um músico da ilha a ter essas responsabilidades. Agora, se houver
alguém acima dele a controlar a sua actividade e as suas escolhas, entidades no
Governo que mandam nele, isso não sei, será mau”, declara. “Mas o facto de o
terem nomeado para o cargo que ocupa é positivo, porque é um profissional com
tarimba, sabe o que é a música, sabe escolher programas”.
De qualquer modo,
insiste na importância da Madeira não deixar cair a sua Orquestra Clássica – e continua,
mesmo, como no passado o fez, a insistir na necessidade de a aumentar para uma
Orquestra Sinfónica.
Sendo a
Região uma terra de turismo com uma certa qualidade,
se se prescindir também de manter um determinado nível na música erudita, está-se
a desperdiçar um potencial. Aliás, em termos de orquestras sinfónicas em
Portugal, Victorino d'Ameida chega mesmo ao ponto de afirmar que “estamos a dar uma imagem de
trogloditas na Europa”. E exemplifica: em Espanha há 37 orquestras sinfónicas.
Na Albânia há cinco. Na Turquia há sete.
“Portugal é o único país que eu conheço nesta situação de carência. É uma vergonha. A Madeira, que é um centro turístico, com um turismo que não é propriamente de ‘pé descalço’, desprezar uma orquestra sinfónica é algo que… sou totalmente contra. Deveria existir uma orquestra sinfónica, que seria uma mais-valia para o turismo. Tenho de defender a minha dama, que é a música. Portugal tem de ter mais e melhores orquestras. Tem de defender os seus valores, e eu sou intransigente defensor desse valor cultural imprescindível em qualquer país civilizado, que é uma orquestra sinfónica”.
O maestro
frisa que isso não é uma posição elitista: “As pessoas conhecem o meu modo ser,
inclusive de amante do futebol. Não sou elitista”. Mas há coisas que não devem
ser encaradas como despesas, mas como mais- valias, insiste. “Portugal é o único país que eu conheço nesta situação de carência. É uma vergonha. A Madeira, que é um centro turístico, com um turismo que não é propriamente de ‘pé descalço’, desprezar uma orquestra sinfónica é algo que… sou totalmente contra. Deveria existir uma orquestra sinfónica, que seria uma mais-valia para o turismo. Tenho de defender a minha dama, que é a música. Portugal tem de ter mais e melhores orquestras. Tem de defender os seus valores, e eu sou intransigente defensor desse valor cultural imprescindível em qualquer país civilizado, que é uma orquestra sinfónica”.
Questionado
sobre o modo como a emigração que actualmente se sente em Portugal tem afectado
o mundo da música, Victorino d’Almeida admite que o fenómeno se tem feito
sentir, mas deixa transparecer que muitos dos nossos valores têm permanecido cá
por uma circunstância “um bocado perversa”: o facto de o mercado para músicos
nas orquestras europeias, e não só, ser extremamente difícil e concorrencial.
“Não é fácil um jovem músico português ir para o estrangeiro”, constata. A maioria dos lugares está ocupada.
“Não é fácil um jovem músico português ir para o estrangeiro”, constata. A maioria dos lugares está ocupada.
COMUNICAÇÃO
SOCIAL É ‘PAROLA’ EM MATÉRIA DE CULTURA
Porém, precisamente neste enquadramento, o que
realmente considera lamentável é que a comunicação social nacional tenha pura e
simplesmente ignorado o facto de dois jovens músicos portugueses terem
conseguido ser seleccionados para a Orquestra Sinfónica de Berlim, “que é a
mais difícil orquestra, para se entrar”.
“É
vergonhoso”, sublinha. “Comparando com o futebol, isso é exactamente a mesma
coisa que ser contratado para a primeira equipa do Barcelona ou do Real Madrid.
Mas nenhum jornal nem televisão disse nada, por parolice, porque são parolos!
Porque isto era de pôr na primeira página! Isto é o que mostra o que temos, a
comunicação social que, lamento muito dizê-lo, está ao nível do nosso Governo”.
E prossegue,
criticando “aquelas bodegas que nos apresentam diariamente, com que martelam as
pessoas… Drogam as populações. Tudo serve para fabricar vedetas
extraordinárias, até o pior rockeiro… porque os bons, eu conheço-os! E, pior que
isso, são os DJs, que é uma profissão que eu não reconheço! Há duas profissões que eu não reconheço: a de DJ e a de homem-estátua (risos). Por
maior que seja o meu sentido democrático”.
“De repente,
eu tenho de ver um músico ao lado de um DJ, como se ambos fossem o mesmo…
Lamento muito, mas o meu sentido de democracia não vai tão longe. Não
exageremos. Sou a favor do entretenimento, da diversão, das pessoas dançarem,
cantarem, irem beber uns copos, se quiserem… Mas isso é entretenimento, não é
Cultura”, denuncia. E a comunicação social lusa não devia tratar Cultura e entretenimento por igual.
Finalmente,
quanto à atenção dedicada pelo público à sua produção cultural, que é vasta, o
nosso entrevistado não tem queixas: tem sido sempre bem acolhido.
“Eu seria de uma injustiça e de uma ingratidão total se dissesse que o público não me apoia. Isso não é verdade. Em 2011 fiz vinte e tal concertos pelo país, que se cifraram em cerca de 14 mil pessoas. É bom”, constata, feliz pelo interesse demonstrado.
“Eu seria de uma injustiça e de uma ingratidão total se dissesse que o público não me apoia. Isso não é verdade. Em 2011 fiz vinte e tal concertos pelo país, que se cifraram em cerca de 14 mil pessoas. É bom”, constata, feliz pelo interesse demonstrado.
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