domingo, 3 de agosto de 2014

Em louvor do Orfeão Madeirense



Por LUÍS ROCHA

Um livro recentemente lançado, e disponível para compra na Livraria Esperança ou na própria sede do Orfeão Madeirense, à Rua dos Ferreiros, 175, 1º andar, vem desvendar ao leitor contemporâneo toda a importância desta colectividade que ainda hoje sobrevive, embora com dificuldade e à custa de muita 'carolice' dos seus membros e dirigentes, dado que os apoios existentes, infelizmente, são poucos. 
Trata-se de 'O Orfeão Madeirense - das origens a 1957', um aturado estudo da autoria de Maria Amélia Machado Rua. A obra, que resulta de uma tese de mestrado em Estudos Artísticos apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, foi editada pelo Orfeão, com o apoio da Direcção Regional dos Assuntos Culturais, e representa inegavelmente um marco importante no percurso desta agremiação, que tanto contribuiu para a vida cultural madeirense ao longo do século XX - e ainda continua a fazê-lo no século XXI. 
O surgimento deste estudo vem assinalar a comemoração dos 95 anos daquele que é o grupo coral mais antigo da Madeira e um dos mais antigos de Portugal. 
Conforme nos explicou a professora Maria Amélia Machado Rua, o que determinou a existência do livro foi, em primeiro lugar, o seu interesse pela música coral. Mas não se tratou de algo premeditado. 
"Eu precisava de um tema para a minha tese. Não sou madeirense, mas estava a trabalhar aqui na ilha, e interessei-me pelo Orfeão. Ao começar a pesquisar, achei que o assunto era realmente interessantíssimo, e prossegui com o estudo".
A autora realça o papel notável que o Orfeão Madeirense desempenhou na sociedade madeirense do século passado, enquanto aglutinador de vontades e interesses de múltiplas franjas da sociedade em torno de um objectivo cultural. "Realmente, naquela altura, o Orfeão arrastava multidões", salienta. "As pessoas aguardavam ansiosamente por um concerto do Orfeão. Até a provar isto, está o facto de em nenhum concerto conseguirem dar resposta à quantidade de pessoas que queriam ouvir, razão porque os concertos eram frequentemente repetidos. Na Madeira, o Orfeão desempenhava na altura - e posso inferi-lo dos documentos de li, dos jornais que vi - um papel dominador na área da música coral, era quem a divulgava, quem realmente a projectava". 
Maria Amélia Rua refere que esta era., de facto, "a instituição cultural mais relevante" da época. 
"Havia já muita actividade musical na Madeira. Eu li mesmo muita coisa sobre esta temática, e não houve de facto nenhum grupo que tivesse tanto destaque como o obteve, nesses tempos áureos, o Orfeão Madeirense". 
Embora o trabalho lhe tenha dado bastante prazer, não foi de molde a constituir um simples entretenimento: "Foi bastante difícil, porque a consulta aos documentos, vários dos quais de difícil leitura, tornou o trabalho demorado", confessa.
Percebe-se facilmente que a labuta foi efectuada com honestidade e seriedade. Para os interessados, e serão muitos, dado que muitas famílias madeirenses (entre as quais a do autor deste artigo) estiveram envolvidas nas múltiplas actividades do Orfeão, são muitos os aspectos interessantes, e até agora não suficientemente divulgados - ou pelo menos não reunidos num todo coerente e articulado - que este livro proporciona.


A obra inclui uma plétora de informação documental sobre a popular agremiação, explicando as suas origens, como se estabeleceu a sua organização, quem eram os seus elementos, como e onde decorriam os ensaios, como se procedeu ao apuramento das vozes, quem eram os seus mais destacados intérpretes e chefes de naipe, como a comunicação social da época via e retratava o Orfeão (não lhe poupando, aliás, elogios), os intercâmbios culturais que se verificaram, por exemplo com Canárias, as "des-continuidades" da sua história, e o recomeço e continuidade em meados da década de 50. 
Muito interessante é, também, um capítulo dedicado ao Septeto Dr. Passos de Freitas, com referências, inclusive, à sua estada em Londres em 1928, onde gravaram doze discos na afamada companhia de gramofones 'His Master's Voice' (Ed. Columbia) e às suas actuações nesta cidade e em Paris. 


Para Paulo Ferreira, dirigente do Orfeão Madeirense, a concretização deste livro, enriquecido com muitas imagens, desde fotografias a fac-similes de partituras ou de artigos nos jornais das primeiras décadas do século XX, constitui um acontecimento "muito importante". 
"É o reconhecimento da importância do Orfeão no panorama cultural da Região. Penso que se o Orfeão não tivesse atingido o nível que atingiu naquela altura, e também em algum passado recente, nunca se poderia ter assumido como tema relevante, digno de uma tese académica", reflecte. 
O nosso interlocutor afirma que "no mínimo, qualquer madeirense já ouviu falar do Orfeão", dado o significado que o mesmo conseguiu assumir como vector cultural na ilha. 
"Essa referência vem, exactamente, destes anos de apogeu. A sociedade era, então, diferente, existiam muito menos oportunidades de entretenimento, mas não sei se não haveria também mais vontade e interesse genuínos pela Cultura". Na época existiam, certamente, formas mais 'fáceis' de passar o tempo, existia o folclore, a música tradicional... Mas muitas pessoas, oriundas de diferentes faixas sociais, interessavam-se pela Cultura a um nível mais elevado, sendo que esse interesse era, também, encarado como uma forma de convívio social relevante, reconhece Paulo Ferreira. 
Na oportunidade, este responsável destacou as palavras ditas pela secretária regional do Turismo e Transportes, Conceição Estudante, no lançamento do livro: como filha de um antigo orfeonista, sublinhou que o pai encarava mesmo como um dever cívico o acto de pertencer ao Orfeão. 



"Contribuir para a Cultura do povo era um dever cívico para muita gente, que se reunia no Orfeão Madeirense, o qual, conjuntamente com o Septeto Dr. Passos Freitas, construiu uma história bonita que estamos agora a reviver", realça.
O Orfeão tem, também, planos para lançar brevemente um disco. As gravações decorrem presentemente, devendo o CD surgir mais para o final do corrente ano. 
"Parece que estamos a estalar os foguetes todos num ano só, depois de muitos anos de interregno nestas lide, embora o Orfeão nunca tivesse de facto parado, e tivesse sempre atuado. No último ano mudámos de maestro, muitos elementos saíram e ainda não conseguimos colmatar essas saídas, mas, pelo menos a nível artístico e de 'trabalho de casa', penso que as coisas estão a ser feitas. Do que precisamos realmente, agora, é destas situações, como o lançamento do livro e do CD, para nos motivar e para continuarmos a trabalhar", diz Paulo Ferreira. 
"Temos tido dificuldade em arranjar elementos que rejuvenesçam o coro, estamos como um coro um pouco envelhecido, com poucas vozes... precisávamos, realmente, que houvesse mais algum interesse, e mais alguma adesão dos madeirenses para que o coro, mesmo que não voltasse ao esplendor dos anos 30 e 50, tivesse qualidade e se conseguisse ouvir com mais volume", reconhece. 
Para este responsável, a comunicação social não presta grande atenção nem ao Orfeão, nem aos grupos corais: "Se calhar, estes já não são notícia", lamenta. "O que é mais notícia são os DJs e as festas dos cafés e dos bares". 
Esta circunstância decorre em parte, no seu entender, da impossibilidade de estas agremiações terem 'máquinas publicitárias' à altura, porque também não têm meios financeiros para isso. Por outro lado, entende que as pessoas se acomodaram um pouco, entendendo que essa perspectiva de 'dever cívico' que existia no passado, de pertencer a associações culturais, se perdeu um bocado. O que é de lamentar, porque seria um modo de projectar o nome da Madeira no exterior, dando a perceber que no espaço insular também se fazem coisas válidas. 


"O Orfeão tem sempre interesse em sair da ilha e ir ao continente, obtendo convites de outros grupos para participar em eventos e festivais. Mas se o coro não está capaz ou está fragilizado, não conseguimos responder a essas solicitações. Gostávamos de ter a capacidade artística, com maior volume de vozes e maior equilíbrio. É de lamentar que haja uma dificuldade extrema em arranjar elementos masculinos", confidencia-nos. 
Paulo Ferreira ambiciona realizar mais concertos na Região e não só, com qualidade. Mas é-lhe difícil cativar os jovens. 
A juventude, afirma, gosta de cantar. Participa em coros infantis, em coros juvenis. Mas quando chega à fase adulta, deixam de participar no coro. Dizem frequentemente que não têm tempo, por causa do trabalho. Mas tirar três horas por semana, que seja, para participar nos ensaios e de vez em quando fazer um concerto não é assim tão difícil. Se calhar, com boa vontade isso seria possível. "Mas as pessoas estão sujeitas a um ritmo diário tão elevado, com o trabalho, com os filhos, com tudo isso, que depois esquecem que, se parassem cinco minutos e pensassem na sua vida, se calhar arranjavam algum tempo para ensaiar. É que só quem está nisto é que sabe: após um dia de stress, de preocupações, depois de um ensaio as pessoas saem leves. Ir cantar, treinar a respiração, faz bem, e falo por experiência própria. Saímos do ensaio com a cabeça totalmente limpa, e com o espírito transfigurado. Se as pessoas soubessem disso, se calhar em vez de irem para casa ver televisão, iriam para um coro - e veriam que lhes faria bem", assevera. 
O coro misto do Orfeão tem apenas 18 elementos, dos quais três homens, sendo o resto senhoras. Outro projecto, existente há poucos anos, é o coro 'Stimme', que nasceu mesmo para não ser muito grande, contando com 13 integrantes. 
"Tanto num como noutro, precisávamos que alguns reforços, mas a prioridade é realmente o coro misto do Orfeão", admite.


Questionado sobre se entende ser possível ao Orfeão Madeirense ultrapassar a actual situação de crise, que perturba tantas instituições e agentes culturais, Paulo Ferreira manifesta-se convicto de que qualquer instituição sobrevive graças à vontade dos seus elementos. "Se os elementos do Orfeão quiserem que o mesmo continue, vai continuar. Porque se, em tempos dificeis, nós nos unirmos, conseguiremos". 
O Orfeão começou agora uma campanha de angariação de sócios, que visa colmatar dificuldades económicas. "Se calhar há muita gente aí que não se importaria de ser sócia do Orfeão e de contribuir monetariamente", especula o entrevistado, admitindo ser necessária mais dinâmica na busca de sócios pagantes. Já quanto a apoios oficiais, "depois de alguns anos sem receber nenhum, no ano passado tivemos o apoio [da DRAC] para editar este livro e para mais algumas despesas. Não somos ingratos; também sabemos que as dificuldades são muitas e agradecemos o que nos dão. Com o que nos deram, conseguimos fazer isto. Contamos também com um apoio da DRAC para editarmos o nosso trabalho discográfico. A CMF também nos tem apoiado na medida das suas possibilidades com uma verba anual". Isto é complementado com alguns concertos realizados esporadicamente, e que são remunerados. Não são muitos, mas sempre ajudam. 
"Não vou, nem devo queixar-me dos apoios oficiais. Penso que nos apoiam no que podem. Temos é de ser capazes de ir buscar outros meios de financiamento à sociedade civil e às empresas - mas, se calhar, é isso o mais complicado", conclui Paulo Ferreira. 



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